2020-11-26

Soberania Alimentar

Por José Miguel Pacheco

A pandemia de COVID-19 veio deixar clara, para além da importância da existência de um Serviço Nacional de Saúde forte, a importância da produção de alimentos e da Soberania Alimentar de um país.

Aquilo que se passou com os equipamentos e material de saúde no início da crise sanitária, que perante uma situação de escassez gerou atitudes de armazenamento, proibição de exportações, quebra de contratos de venda, especulação e falta de solidariedade internacional, deverá fazer-nos pensar sobre o que se poderá passar numa situação de escassez de alimentos à escala global, num país que importa mais de 70% dos alimentos que consome (segundo um recente estudo da Universidade de Aveiro (UA), com a colaboração da Global Footprint Network).

Provavelmente uns dirão que isso será um cenário de um filme, mas também poucos acreditariam no final de 2019 na realidade que vivemos actualmente em 2020 e a verdade é que existem hoje, mais do que em outros momentos, um conjunto de factores que poderão ditar a redução momentânea da produção de alimentos ou simplesmente a falta da sua disponibilidade.

As alterações climáticas são um destes factores, a sua influência na agricultura por via de fenómenos extremos cada vez mais comuns já hoje tem impacto e gera flutuações nos mercados agro-pecuários mundiais. Imaginemos então que efeito poderá ter uma conjugação de fenómenos extremos, num mesmo ano, entre inundações, seca extrema, vagas de calor ou frio, tempestades, em diferentes regiões do mundo e que afectem, por exemplo, algumas das principais regiões produtoras de cereais à escala global.

Por outro lado, tal como as pandemias, problemas de sanidade vegetal ou animal de escala global também fazem parte da história da humanidade, como por exemplo, a do fungo que no século XIX afectou a produção de batata e que se estima que na Irlanda possa ter matado à fome um milhão de pessoas e forçado mais de um milhão a emigrar (tragédia de Doolough) ou do vírus da peste bovina, que também no século XIX matou 90% do gado africano.

Para os mais atentos, está claro que já hoje assistimos a um ritmo preocupante ao surgimento de novos problemas de doenças e pragas que afectam as nossas produções, o que pode estar relacionado com as alterações climáticas mas também ser fruto da aplicação de pesticidas, antibióticos e outros produtos, numa agricultura cada vez mais industrializada e massificada, que, também pela via da redução da própria biodiversidade agrícola e alimentar, nos faz estar mais sujeitos ao impacto de um problema de sanidade vegetal ou animal à escala global que possa surgir.

Mas não só do clima e das doenças a nossa segurança alimentar poderá estar comprometida. Bem mais perto da nossa memória está a crise alimentar de 2007/2008, motivada em grande parte por decisões políticas como a de desviar parte da produção de cereais e oleaginosas para a produção de combustíveis, conjugada pela especulação gerada pela transferência de fundos de investimento do sistema financeiro para as chamadas commodities agropecuárias.

A verdade é que as actuais políticas nacionais seguem indiferentes a tudo isto, continuamos com uma política agrícola em que apenas se valoriza quem tem dimensão e capacidade exportadora, desprezando quem alimenta o mercado nacional. Exemplo disso é a recente “Agenda de Inovação para a Agricultura” para a próxima década, apresentada pela Sr.ª Ministra da Agricultura e onde se diz claramente que os produtores para quem se destina a referida agenda são tão e somente aqueles que sejam “inovadores e competitivos à escala global”, ou seja, quem produz para alimentar o mercado local, regional ou nacional, não é prioridade no contexto desta agenda.

Logicamente falar de Soberania Alimentar não é só falar de segurança alimentar, é dar a relevância ao tema da alimentação que ele merece e não o tratar como mais um conjunto de bens transacionáveis no mercado global, é colocar as políticas públicas, comerciais, alimentares e agrícolas ao serviço das pessoas e dos modelos de produção, como o modelo agroecológico, capazes de dar respostas aos desafios ambientais, territoriais e sociais com que nos enfrentamos actualmente.

Quase 25 anos depois de lançado pela Via Campesina Internacional na Conferência Mundial da Alimentação, que teve lugar em 1996, em Roma, o conceito de Soberania Alimentar é hoje mais actual do que nunca.